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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Entre lembrar e esquecer



Algumas palavras sobre o livro de Mauro Paz




O romance “Entre lembrar e esquecer”(Patuá, 2017), de Mauro Paz, faz jus ao título: por acaso você se lembra do livro “Rota 66”, de Caco Barcellos? Se lembra da mescla entre romance policial, reportagem investigativa e um narrador-personagem que pouco sabe, mas se propõe a ir descobrindo e expondo as falsas ideias – estas sim, onipresentes – tão óbvias, mas tão óbvias, que a gente nem acredita que alguém, em sã consciência possa reproduzi-las? 


Se não se lembra, releia Caco Barcellos. Como este, um livro para não ser esquecido.


O livro de Paz conta a história de uma pequena família negra e classemediana de Porto Alegre que perdeu um de seus membros, o adolescente Carlos Eduardo. Cadu era o filho único de Jussara e Douglas – a parte mais próspera da família, que vivia em um condomínio de alto padrão na cidade gaúcha. Aos dezesseis anos, o garoto é assassinado em uma festa, na casa de um influente político da região. O anfitrião era filho do figurão. Cadu era o único negro na casa (além dos e das empregadas, obviamente).


Ao longo da obra, o menino morto, essa personagem principal ausente, ganha corpo através de um enredo cheio de idas e vindas no tempo e nos espaços da memória de César, o tio, narrador-personagem: sua infância pobre, a expectativa da família, o colégio caro pago com bolsa de estudos, o racismo recheando de barata morta o sanduíche oferecido pelos novos “amigos”, as namoradas, a notícia da morte do sobrinho, o medo de ter filhos e vê-los sentir outra vez, na pele possivelmente negra, o legado da nossa miséria.


César é representado por muitas facetas: além de narrador-personagem e tio de Cadu, figura como repórter investigativo, o filho que foi expulso da escola, o suicida, o malsucedido até mesmo na tentativa de morte.


No império deste Cesar há um acúmulo de dores de classe, de raça, de filho, de marido… há dores que se reproduzem feito a barata morta no pão da escola soberba, dores que sobem pelas paredes, escondem-se nas suas brechas e, sobretudo, sobrevivem.


Nesse sentido, a narrativa de Paz é, principalmente, a de um sobrevivente. 


Em meio à crescente dificuldade de narrar, Paz reúne em sua ficção (que é baseada em uma história da sua própria família), as duas principais bagagens do narrador, segundo Walter Benjamin: o legado do viajante recolhedor de histórias e aventuras, e o conhecimento acumulado da pessoa provinciana que nunca saiu de sua cidade e, portanto, conhece muito bem sua aldeia.


O narrador de Paz, antes de viajar para exercer sua profissão de repórter, teve tempo de observar, analisar, acumular histórias até merecer a alcunha de griot.


César negro.


César forte.


César pronto para sobreviver à própria história.


Dentro de um contexto de franco genocídio da população negra, do nosso encarceramento em massa, de escravismo tardio e doenças psíquicas medicadas com mil e uma pílulas de felicidade em cápsulas (às vezes de revólver, às vezes de aspirina), César nos faz lembrar que, na hora em que o bicho pega, a carne mais barata do mercado continua sendo a negra.


Apesar de tudo, “Entre lembrar e esquecer” nos traz de volta outro algo essencial. Nestes tempos tenebrosos, um romance que termine em tom esperançoso tem o potencial de resgatar a utopia necessária para que sigamos na luta.


Infelizmente, quem foi não voltará. Mas é possível preservá-los e honrar suas memórias com nossa literatura.


Quanto a nós, ainda sobreviventes, resta fazer crescer e multiplicar a luta. Resta dividir a esperança para que do amargo dessa literatura se renovem nossas sonhos, nosso povo, nossas forças.

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