“Todas
as nôistes eu dava duas viagens. Eu ia de bonde, e voltava a pé com
as tabuas na cabêça. Treis dias eu carreguei tabuas dando duas
viagens. Dêitava as duas horas da manhã. Eu ficava tão cançada
que não conseguia dórmir. Eu mesma fiz o meu barracaozinho. 1 metro
e mêio por um metro e mêio. Aquêle tempo eu tinha tanto mêdo de
sapo. Quando via um sapo gritava pedia socorro. Quando eu fiz o meu
barracão era um Domingo. Tinha tantos homens e nenhum auxiliou-me
sobrou uma tabua de quarenta centimetro de largura era em cima dessa
tabua sem colchão que eu dórmia.”
Carolina
Maria de Jesus. Onde estaes Felicidade? Disponível em
<http://www.mepario.com>
“Brooklyn, o que será de ti? Regar a paz, eu vim
Jesus já foi assim, brigas traz intrigas, ai de mim
Se não tolin, zé povim quer meu fim
Se esperar, apodrece, se decompõe
Se a gente faz, corre atrás, pede a paz, eles esquecem
Sempre assim, crocodilo hoje só rasteja em solo fértil”
Sabotage.
Canão. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WF7LLl7r4Os>
Pergunta
inicial: Quilombo ou Senzala Moderna?
Sabemos
bem que a urbanidade tem sido fator de muitas mudanças sociais ao
longo da história. O êxodo rural no Brasil, por exemplo, foi
certamente um dos grandes responsáveis pelo fenômeno do surgimento
das favelas – esses aglomerados de casas, pessoas e sonhos ora
invisíveis, ora descritas na literatura como componentes de um
cenário nacional fadado ao fracasso – dada sua composição étnica
de grande ascendência negra.
As
favelas, do ponto de vista cultural e linguístico, são uma enorme
e constante fonte de renovação, por isso são tidas, por alguns,
como verdadeiros quilombos renascidos com a missão de desmontar o
esquema político, econômico e cultural que, apesar dos mais de cem
anos de abolição da escravatura, nos tem mantido escravos e
escravas, em determinados aspectos de nossas vidas.
Há
ainda um outro ponto de vista sobre a favela que tende a focar as
relações econômicas e que, sem se contrapor à visão
revolucionária de “quilombo moderno”, insiste em pensar a
favela também como “senzalas modernas”, já que as comunidades
faveladas reúnem a grande massa trabalhadora que continua a ser o
principal motor econômico do país.
Com
efeito, essa enorme massa trabalhadora/consumidora faz os olhos da
economia se voltarem para esse “mundo favelizado”, o qual,
segundo Mike Davis em Planeta Favela, já se configura como
mais da metade do globo urbano. Como resultado disso, há o
surgimento e fortalecimento de diversos movimentos advindos da
periferia, sobretudo os de cunho cultural, como escolas de samba, os
times de várzea, o Hip Hop e os saraus.
Entre
Canindé e Canão, neguinho e neguinha zika
Mas,
antes mesmo de entrar na “moda”, se pode dizer que a favela teve
seus representantes ilustres: figuras de impressionante talento e que
serviram de inspiração para as novas gerações, como Carolina
Maria de Jesus, a escritora, e Mauro Mateus dos Santos, Sabotage, o
maestro da Canão. Podemos dizer que, entre ambos, há muito mais do
que o óbvio (suas peles negras, sua classe social, sua vivência na
favela e o destaque que ambos alcançaram no mundo das artes).
Podemos enumerar uma série de outras semelhanças, como as fortes
personalidades, a alta resiliência e a forma como ambos escreviam:
uma escrita fraturada e urgente.
A
palavra zika, antes de referir-se a um dos vírus transmitidos pelo
mosquito aedes aegypti, significava, na gíria das favelas
paulistanas do final da década de 1990, azar, coisa ruim a ser
evitada. Atualmente, o termo engloba este e, curiosamente, um outro
significado oposto ao seu original: zika, na gíria das novas
gerações é algo extremamente bom, melhor do que tudo, equivalendo
aos termos “top” (super) e “chave”, “muito louco” ou
“cabuloso”. Sendo assim, ser neguinho, neguinha zika, é ao mesmo
tempo incomodar e despertar admiração – sentimentos que Carolina
e Sabotage despertaram e ainda despertam.
No
caso de Sabotage, “neguinho zika”, nas duas acepções que esta
expressão atualmente engloba, talentoso rapper apelidado de
“maestro do Canão”, ele parece levar para a ponta da caneta o
free style, o canto improvisado mas extremamente denso.
Seu rap vem preenchido de favela, de luta por sobrevivência,
fraternidade, ira e uma cadência rítmica que nos embala e nos leva
para dentro de seu “bom lugar”. Carolina, por sua vez era também
o que hoje se pode chamar de “neguinha zika”: ciente e orgulhosa
de sua negritude, disposta à luta, à briga e a ajudar a quem lhe
pedisse apoio. Ambos foram personagens altamente inspiradoras para o
que hoje é o Movimento Hip Hop e a Literatura Negro-Periférica.
Nascida
em Sacramento (MG), Carolina, a nossa “neguinha zika”,
completaria 103 anos em março, se estivesse viva. Aos 33 iniciou sua
via sacra caminhando durante dois meses, de Sacramento a São Paulo,
cidade onde viveria e trabalharia até sua morte, em 1977. Autora do
best seller Quarto de Despejo: Diário
de uma Favelada, Diário de Bitita e Onde estaes
Felicidade?, dentre outros livros, Carolina deixou registrado o
seu cotidiano na extinta Favela do Canindé, o trabalho de catadora
de papel, a fome, as dificuldades em ser mulher negra e mãe solteira
numa cidade opressora, parideira de misérias. Enquanto lutava pra
sobreviver e sustentar a família, Carolina escrevia pra viver, pra
manter a sanidade mental e a integridade da alma numa cidade que se
“modernisava” e onde sequer restavam porões para as pessoas
pobres morarem, tal qual a autora narra no seu último livro Onde
estaes Felicidade?(Edições Me Parió Revolução, 2014).
Sabotage
era o
nome artístico de Mauro Mateus dos Santos. Paulistano,
nascido em 13 de abril de
1973, na Favela do Canão –
eternizada em suas canções – o rapper, antes
de se firmar enquanto artista, trabalhou
como comerciante varejista
de drogas e tinha uma aparência, por assim dizer, “pouco
valorizada”: preto de último tom e sem os dentes da frente,
extremamente magro e com dreads espetados na cabeça, como se
quisessem alçar vôo, fazer jus à personalidade que os carregava.
Sabotage era o neguinho
zika, mas seu talento, como
o de Carolina, enchia os
olhos e encheu os bolsos de muita gente com tino empresarial. Ele
cantou com muitas parcerias
diferentes, participou de inúmeros
programas de TV e atuou em
três filmes: O Invasor, Carandiru e um documentário sobre sua vida.
Foi assassinado em 24 de
janeiro de 2003, a caminho do Fórum Social Mundial. Um dia antes,
havia gravado a música Canão, onde
parece se despedir de nós, do Canão e
do Zé Porvim que quis seu
fim. Mas o maestro do Canão não morre. A
poeta do Canindé também não.
Suas
obras
e condutas
não permitem o
esquecimento.
Quilombo
ou Senzala moderna, do ponto de vista histórico, as favelas ainda
são recentes, mas já reúnem fatos e personalidades capazes de
mudar os rumos do país. Carolina e Sabotage nos inspiram.
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