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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Aline Bei e o silêncio do pássaro morto.




Logo após a morte de Marielle Franco, recebi um áudio de What’sapp nos alertando, sobretudo às mulheres negras, para que permaneçamos juntas:

Fiquem juntas!
Nenhuma de nós, nenhuma, vai aguentar sozinha
(…) uma chora a outra enxuga (…)
Precisamos mais do que nunca ter um mulher por perto.
(…) Fiquemos juntas” Cidinha Oliveira e Nega Duda ( 19/03/2018)

Pois bem, há algum tempo atrás fui procurada pela escritora estreante Aline Bei: queria me presentear com seu primeiro livro. O peso do pássaro morto chegou, mas o correio fez de conta que tentou entregar e não entregou - sempre fazem isso. Minha quebrada é quebrada mesmo. Faz medo. Recebi apenas um aviso de que uma encomenda estaria à minha disposição na agência mais próxima.
Peguei o Peso do pássaro morto e devorei num dia só. Devorei as “liberdade prosaica” que não respeitam os espaços das linhas e vão, como verso, preenchendo de silêncio e som, objeto e vazio na página, como um longo poema, como uma prosa que eu mesma escreveria se tivesse tido tempo.
Li de um só gole de angústia.

Depois desmaiei o livro bem escondido na prateleira que era pra nunca mais ter que me deparar com a história de uma mulher cujas perdas na vida são tantas que até mesmo as páginas do livro ficam pontilhadas de vazio.
Fiquei triste.
Pesarosa.
A trajetória da personagem é contada em primeira pessoa, desde os oito anos de idade e sua primeira narrativa de perda envolve a amiguinha de escola, Carla. Esta, morre durante uma brincadeira de subir no muro e espiar cachorro bravo. Caiu. A explicação dada à protagonista foi dada pelo Seu Luís, um velho amável, benzedeiro, cujos olhos, corrompidos pela catarata, conseguia curar aos outros, mas não a si mesmo. Su explicação resumida foi:

bom,
a carla morreu de
Cachorro”

Cachorro maíusculo, letra maiúscula maior que o C de carla, criança pequena, agora aos pedaços.
É desse jeito que o sujeito lírico feminino vai desenhando sua história, sem nunca dizer seu nome, sem nunca encontrar felicidade que dure mais que o passar de uma estrela que cai.
Sua história é a mesma de tantas mulheres que nascem e morrem praticamente sem terem vivido. Anuladas socialmente, sofrem as agruras de serem mulheres em um mundo em que as mulheres são sistematicamente apagadas, violentadas e mortas. Só no ano de 2016 foram 533 feminicídios. Isso significa que 533 mulheres foram assassinadas no Brasil naquele ano, apenas por serem mulheres! Entretanto, esse dado não inclui todos os casos registrados simplesmente como “crimes passionais”.
Assim, segundo o  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada uma hora e meia MORRE uma mulher no Brasil (IPEA, 2013).
Para além disso, o silenciamento que, podemos dizer, na obra de Aline Bei, depois das tristezas sobrevividas e representadas pelas mortes de pessoas queridas, por humilhações sofridas na escola, pelo violento estupro sofrido de seu ex-namorado e, por fim, um filho como resultado de tamanha violência. Um filho que nunca lhe despertou amor. Apenas culpa e essa absurda vergonha de ter nascido MULHER!

(…) pensei seriamente
em

aborto.


mas não tive Coragem
pra dizer

Estupro.

então eu disse:

fiz sexo.

e a minha família falou:

- se foi mulher pra fazer, vai ser mulher pra criar. (BEI, p.100)

Nesse enredo cujas belezas da escrita contrastam com as agonias narradas, até mesmo a verdade se perde:

a verdade
estava morta
de tão trancada que ficou por esses anos.
(BEI, p.101)


Por isso, porque a história das mulheres tem sido tão traumática e esse trauma tão normatizado que muitas de nós sequer nos damos conta da opressão, repito as palavras de minhas irmãs negras: “Fiquemos juntas”.
Aline. Sua escrita é força, é poder. Por favor, continue a escrever e compartilhar.



Referências:

BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, 2017, 168 pp.

DUDA, Nega. OLIVEIRA, Cidinha. Fiquem juntas. Audio de Whatsapp recebido em 19/03/2018.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf>. Acesso em 22/04/2018.

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