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após a morte de Marielle Franco, recebi um áudio de What’sapp nos
alertando, sobretudo às mulheres negras, para que permaneçamos
juntas:
“Fiquem juntas!
Nenhuma de nós, nenhuma, vai
aguentar sozinha
(…) uma chora a outra enxuga
(…)
Precisamos mais do que nunca
ter um mulher por perto.
(…) Fiquemos juntas”
Cidinha Oliveira e Nega Duda ( 19/03/2018)
Pois
bem, há algum tempo atrás fui procurada pela escritora estreante
Aline Bei: queria me presentear com seu primeiro livro. O peso do
pássaro morto chegou, mas o correio fez de conta que tentou
entregar e não entregou - sempre fazem isso. Minha quebrada é
quebrada mesmo. Faz medo. Recebi apenas um aviso de que uma encomenda
estaria à minha disposição na agência mais próxima.
Peguei
o Peso do pássaro morto e devorei num dia só. Devorei as
“liberdade prosaica” que não respeitam os espaços das linhas e
vão, como verso, preenchendo de silêncio e som, objeto e vazio na
página, como um longo poema, como uma prosa que eu mesma escreveria
se tivesse tido tempo.
Li
de um só gole de angústia.
Depois
desmaiei o livro bem escondido na prateleira que era pra nunca mais
ter que me deparar com a história de uma mulher cujas perdas na vida
são tantas que até mesmo as páginas do livro ficam pontilhadas de
vazio.
Fiquei
triste.
Pesarosa.
A
trajetória da personagem é contada em primeira pessoa, desde os
oito anos de idade e sua primeira narrativa de perda envolve a
amiguinha de escola, Carla. Esta, morre durante uma brincadeira de
subir no muro e espiar cachorro bravo. Caiu. A explicação dada à
protagonista foi dada pelo Seu Luís, um velho amável, benzedeiro,
cujos olhos, corrompidos pela catarata, conseguia curar aos outros,
mas não a si mesmo. Su explicação resumida foi:
“bom,
a carla morreu de
Cachorro”
Cachorro
maíusculo, letra maiúscula maior que o C de carla, criança
pequena, agora aos pedaços.
É
desse jeito que o sujeito lírico feminino vai desenhando sua
história, sem nunca dizer seu nome, sem nunca encontrar felicidade
que dure mais que o passar de uma estrela que cai.
Sua
história é a mesma de tantas mulheres que nascem e morrem
praticamente sem terem vivido. Anuladas socialmente, sofrem as
agruras de serem mulheres em um mundo em que as mulheres são
sistematicamente apagadas, violentadas e mortas. Só no ano de 2016
foram 533 feminicídios. Isso significa que 533 mulheres foram
assassinadas no Brasil naquele ano, apenas por serem mulheres!
Entretanto, esse dado não inclui todos os casos registrados
simplesmente como “crimes passionais”.
Assim,
segundo o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
a cada uma hora e meia MORRE uma mulher no Brasil (IPEA, 2013).
Para
além disso, o silenciamento que, podemos dizer, na obra de Aline
Bei, depois das tristezas sobrevividas e representadas pelas mortes
de pessoas queridas, por humilhações sofridas na escola, pelo
violento estupro sofrido de seu ex-namorado e, por fim, um filho como
resultado de tamanha violência. Um filho que nunca lhe despertou
amor. Apenas culpa e essa absurda vergonha de ter nascido MULHER!
(…) pensei seriamente
em
aborto.
mas não tive Coragem
pra dizer
Estupro.
então eu disse:
fiz sexo.
e a minha família falou:
- se foi mulher pra fazer, vai
ser mulher pra criar. (BEI, p.100)
Nesse
enredo cujas belezas da escrita contrastam com as agonias narradas,
até mesmo a verdade se perde:
a verdade
estava morta
de tão trancada que ficou por
esses anos.
(BEI, p.101)
Por
isso, porque a história das mulheres tem sido tão traumática e
esse trauma tão normatizado que muitas de nós sequer nos damos
conta da opressão, repito as palavras de minhas irmãs negras:
“Fiquemos juntas”.
Aline.
Sua escrita é força, é poder. Por favor, continue a escrever e
compartilhar.
Referências:
BEI,
Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, 2017, 168
pp.
DUDA,
Nega. OLIVEIRA, Cidinha. Fiquem juntas. Audio de Whatsapp recebido em
19/03/2018.
INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA).
Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Disponível
em:
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf>.
Acesso em 22/04/2018.
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