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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O bristol em chamas

Notícias ao amigo de infância

Amigo,
          saudades.
          Já faz pelo menos 15 anos desde que você se juntou aos demais. Neste tempo, quase nunca te escrevi, embora pense em vocês cotidianamente. Escrevo porque preciso dividir, contar, religar os fios que entrançam presente e passado. Nossa infância e a vida adulta, que nós não compartilhamos, porque você se mudou.
Amigo, lembra que nessa cidade – que era a “terra da garoa” – ninguém conseguia apagar as fogueiras que fazíamos até altas horas da noite? Nem a chuva, nem os ninjas, os tiroteios, a polícia... No máximo, a gente corria e voltava pra espantar o frio quando o sufoco passasse. A gente ria do sufoco.
Se você estivesse aqui, ia representar comigo uma geração que brincou nas ruas e que viu seus amigos de infância sendo mortos um após outro. Presenciou o circo em chamas. Naquele tempo (lembra?), a ausência do governo, o pouco dinheiro e a escola ruim criaram situações que você veria hoje no Rio de Janeiro se estivesse aqui. Nós, moradores do Parque Bristol, não podíamos nem passear livremente pelo Clímax, ou Savério, ou Livieiro, e vice-versa, lembra? Eu nem teria casado com o marido que escolhi pra mim e que você nem conheceu (eu não ia casar com um menino da rua!).
Lembra que tempo mais triste, a gente brincando na rua ao lado de um corpo, horas a fio, esperando o rabecão? No ano de 2010, amigo, muita coisa é diferente: o circo, embora permaneça armado, não está em chamas. Seu filho e a minha filha não vêem cadáveres nas ruas, o rap não é muito ouvido (só por alguns saudosistas) e quem dominou foi o funk – que é bem diferente daquele, de Claudinho e Bochecha, só querendo ser feliz. As crianças não brincam na rua, porque há carros demais para isso. Não se morre mais de homicídio e o nosso bairro é seguro. Podemos, agora, ir ao baile sem a preocupação dos tiros, de ter que sair correndo.
Como vê, muita coisa mudou, mas o motivo da mudança não conto, porque o circo, como disse, continua armado – e com a gente dentro! Se eu contar, ele volta a pegar fogo. Só sei que não é obra do governo. Se você estivesse aqui, veria como nos multiplicamos: muita gente, muito carro, pouco espaço vazio, uma saudade danada e um esforço constante por honrar sua memória. Não esquece, tamo junto (é assim que se diz no Rio de Janeiro, hoje). Manda lembrança aos outros.

Sente um abraço e fica em paz.

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