Notícias ao amigo de infância
Amigo,
saudades.
Já faz pelo menos 15 anos desde que você se juntou
aos demais. Neste tempo, quase nunca te escrevi, embora pense em vocês
cotidianamente. Escrevo porque preciso dividir, contar, religar os fios
que entrançam presente e passado. Nossa infância e a vida adulta, que
nós não compartilhamos, porque você se mudou.
Amigo, lembra que nessa cidade – que era a “terra da garoa” – ninguém
conseguia apagar as fogueiras que fazíamos até altas horas da noite?
Nem a chuva, nem os ninjas, os tiroteios, a polícia... No máximo, a
gente corria e voltava pra espantar o frio quando o sufoco passasse. A
gente ria do sufoco.
Se você estivesse aqui, ia representar comigo uma geração que brincou
nas ruas e que viu seus amigos de infância sendo mortos um após outro.
Presenciou o circo em chamas. Naquele tempo (lembra?), a ausência do
governo, o pouco dinheiro e a escola ruim criaram situações que você
veria hoje no Rio de Janeiro se estivesse aqui. Nós, moradores do Parque
Bristol, não podíamos nem passear livremente pelo Clímax, ou Savério,
ou Livieiro, e vice-versa, lembra? Eu nem teria casado com o marido que
escolhi pra mim e que você nem conheceu (eu não ia casar com um menino
da rua!).
Lembra que tempo mais triste, a gente brincando na rua ao lado de um
corpo, horas a fio, esperando o rabecão? No ano de 2010, amigo, muita
coisa é diferente: o circo, embora permaneça armado, não está em chamas.
Seu filho e a minha filha não vêem cadáveres nas ruas, o rap não é
muito ouvido (só por alguns saudosistas) e quem dominou foi o funk – que
é bem diferente daquele, de Claudinho e Bochecha, só querendo ser
feliz. As crianças não brincam na rua, porque há carros demais para
isso. Não se morre mais de homicídio e o nosso bairro é seguro. Podemos,
agora, ir ao baile sem a preocupação dos tiros, de ter que sair
correndo.
Como vê, muita coisa mudou, mas o motivo da mudança não conto, porque
o circo, como disse, continua armado – e com a gente dentro! Se eu
contar, ele volta a pegar fogo. Só sei que não é obra do governo. Se
você estivesse aqui, veria como nos multiplicamos: muita gente, muito
carro, pouco espaço vazio, uma saudade danada e um esforço constante por
honrar sua memória. Não esquece, tamo junto (é assim que se diz no Rio
de Janeiro, hoje). Manda lembrança aos outros.
Sente um abraço e fica em
paz.
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